sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Digital?

                                                                      Digital?


Muitas palavras são tão naturais que não prestamos a devida atenção ao que escrevemos, falamos ou ouvimos. Elas saem ou entram no nosso “sistema” de forma tão automatizada que geralmente nem nos preocupamos em verificar sua classe gramatical, que função exerce sintaticamente, seu gênero e número ou mesmo se o sentido que conhecemos é o ideal para aquele contexto.
Lembro bem do dia em que prometi a mim mesmo que seria mais atencioso com a minha própria língua. Eu havia saído do consultório e estava em mãos com uma requisição para a realização de determinado procedimento médico. Olhei, li e simplesmente guardei  a requisição sem procurar saber o verdadeiro significado do que estava escrito.
No outro dia fui até a Central de Atendimento ao Cliente. Tirei minha senha, aguardei pacientemente chamarem meu número e finalmente me dirigi ao guichê. Uma linda moça me atendeu e após alguns minutos de pesquisa em uma pasta pediu para que eu aguardasse mais alguns instantes, pois ela não estava conseguindo localizar tal procedimento médico. A atendente pegou a requisição e a levou até uma senhora que estava lá no fundo da sala, sentada atrás de um enorme birô com um monte de papelada em volta.
A senhora, que parecia ser a chefe do setor, fez sinal para que eu entrasse.  Pediu para que eu sentasse e atendi prontamente. Estava me sentido como um réu durante um julgamento. Ela contou-me que aquele procedimento não estava coberto pelo meu plano, uma vez que eu me encontrava ainda no período de carência. O médico prescreveu quatro sessões e eu teria que pagar cinquenta reais por cada uma.
Curioso, pedi a requisição e a li novamente. Perguntei se ela poderia me explicar tal procedimento, mas a mesma confessou que nos três anos que trabalha ali nunca havia se deparado com um deste e não tinha o conhecimento de como era realizado. Curiosa, ela passou a mão no telefone, digitou alguns números, falou com alguém e finalmente me pediu que a acompanhasse.
Entramos em uma sala onde havia um senhor alto, cabelos grisalhos, vestido de branco e parecendo tão importante quanto um deus. A senhora lhe entregou a requisição. Após ler o que ali estava escrito, observei um discretíssimo ar de riso no cantinho dos seus lábios. Ele olhou para a mulher, olhou para mim e pude então sentir um frio na espinha como se já soubesse que estava condenado.
Ele leu em voz alta o procedimento: DILATAÇÃO DIGITAL ANAL. Procurei, em instantes, mentalizar cada palavra e apelar para o que eu lembrava das aulas do meu professor de português. Neste momento parecia que eu o ouvia dizer: “procure degustar, saborear e digerir cada palavra que você fala, lê ou escreve”. E então comecei minha investigação.
Dilatação é um substantivo. Vem do verbo dilatar: alargar, aumentar de tamanho. Digital me parecia algo moderno, como um equipamento de última geração e que resolvesse tudo de forma rápida, eficiente e indolor. Bem, a última palavra dispensava maiores esclarecimentos. Minha maior surpresa foi descobrir, após explicação do médico, que “digital” não tinha o mesmo sentido que eu imaginava. A palavra vem de digitus, que em latim significa dedo. Por isso vivemos na era digital, onde tudo está ao alcance dos dedos.
Pronto. Tudo estava esclarecido e, ruborizado, peguei de volta minha requisição e saí de fininho daquela sala. Agora eu tinha que avaliar a possibilidade de pagar cinquenta reais para cada “dedada” que levaria do proctologista. Mas, isto é assunto para uma próxima crônica. Até lá!



Eronildo Ferreira

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